Reimaginando Black Mirror: ‘Demon 79’ e as novas possibilidades narrativas

(Foto: Netflix)

(Foto: Netflix)

Uma vendedora imigrante é informada de que deve cometer homicídios se quiser evitar um apocalipse. Essa é a premissa de Demon 79, um episódio que redefine alguns parâmetros de Black Mirror. Rotulado com a marca do Red Mirror, o final da sexta temporada investe no terror sobrenatural em detrimento da sátira meramente tecnológica. 

O roteiro remonta ao terror dos anos 1970, com trilha sonora e fotografia retrô, nos lembrando, inclusive, o romance The Dead Zone (1979) de Stephen King, onde um homem acorda de um coma de quatro anos e descobre que pode prever o futuro tocando as pessoas.

Quando toca um político populista, ele descobre que o candidato se tornará presidente e provocará um colapso social. Para impedir esse futuro, o personagem decide matá-lo.

Em Demon 79, temos um período de movimentação política no ano de 1979 na Inglaterra, ocasião em que conhecemos a protagonista Nida (Anjana Vasan), uma vendedora indiana que vive uma rotina tranquila e monótona em uma pequena cidade. 

Black Mirror: Demon 79
(Foto: Netflix)

Ela trabalha em uma loja de departamentos e é rotineiramente vítima de atos xenofóbicos e racistas, inclusive por parte de sua própria colega de trabalho, Vicky (Katherine Rose Morley), que lê abertamente panfletos contra a imigração e reclama do cheiro da comida indiana. O partido xenofóbico Frente Nacional começa a protestar nas ruas contra a imigração e o político conservador Michael Smart (David Shields) exige mudanças locais. 

Um dia em que estava almoçando no porão da loja, Nida descobre várias manchetes jornalísticas que noticiam trabalhadores vítimas de violência e alguns itens que pertenciam ao fundador da loja, entre eles um talismã com uma gravura misteriosa (o mesmo símbolo do episódio White Bear).

Nida acidentalmente se corta com o talismã e libera um demônio chamado Gaap (Paapa Essiedu), que a informa que ela precisa cometer três sacrifícios humanos nos próximos três dias ou o mundo sofrerá um apocalipse. Nida reluta, mas sem encontrar outra alternativa, embarca na missão de Gaap.

As complexidades morais e a vulnerabilidade emocional de Nida são visíveis na atuação de Anjana, especialmente porque a personagem tenta lutar contra a ideia de salvar o mundo cometendo assassinatos (vale lembrar que, logo no início do episódio, Nida resiste em atender um cliente na loja porque ele foi acusado de homicídio).

Nida é uma imigrante vulnerabilizada e isolada em um contexto de ascensão política conservadora, cujos olhos grandes e expressivos denotam a sua profundidade emocional.

Apesar das pitadas de terror sobrenatural, o roteiro traz também uma dramédia macabra. A abordagem é esperada, considerando que esse foi o único episódio da sexta temporada que não foi escrito exclusivamente por Charlie Brooker: foi feito em coautoria com Bisha K. Ali, que tem experiência com comédias de stand up. O alívio cômico parte de diálogos rápidos e dos momentos em que Gaap tenta ensinar Nida como se tornar uma assassina eficiente.

A ideia parece mais coerente com premissas de séries como o Gabinete de Curiosidades (2022) de Guillermo Del Toro, mas não há como se dizer que o episódio é completamente infiel com a fórmula de Black Mirror. A crítica social que sustenta a narrativa traça paralelos com a política contemporânea e com a atmosfera da época, destacando as tensões em torno da imigração.  

Em dado momento, Nida pede a Gaap para ver o futuro de Michael Smart e vê que o personagem irá instaurar um regime fascista. Nesse contexto, vários pontos nos levam a pensar a luta de classes, como a tensão na relação de trabalho entre patrão e empregada (manchetes no porão da loja de empregados vítimas de violência). 

Ademais, a personagem pega a jaqueta vermelha (cor símbolo do socialismo e objeto tido como inatingível para a trabalhadora) da loja e decide que precisa assassinar Smart. Não à toa, Gaap informa que Nida precisa cometer os sacrifícios até o dia primeiro de maio, dia do trabalhador, e um dos homicídios é executado com um martelo, símbolo da classe trabalhadora.  

A narrativa sugere que devemos assumir a responsabilidade por quem elegemos e pelos respectivos impactos que esses atores acarretam na sociedade. A eleição de líderes autoritários traz um inevitável colapso social e o “esquecimento eterno” advertido por Gaap passa a ser a menor das preocupações. 

Michael Smart, em Demon 79. (Foto: Netflix)

Se antes Black Mirror se preocupava principalmente em mostrar advertências tecnológicas, Demon 79 chama atenção para os erros do passado, trazendo lições para que tais equívocos não se repitam no futuro. O racismo, a xenofobia e o conservadorismo declarados parecem estranhamente familiares com o mundo contemporâneo. Eis o aviso de Charlie Brooker: preste atenção.

Trata-se de mais um episódio que pode desapontar os fãs mais tradicionais da série, especialmente pelo desvio intencional da temática tecnológica e futurista. Definitivamente não é uma história que nos fará refletir sobre o uso dos nossos smartphones. Contudo, o episódio desafia nossas percepções morais e nos compele a enfrentar a natureza insidiosa do campo político. 

Lança-se um dilema filosófico de utilitarismo extremo: a morte de algumas pessoas más é justificável quando visa assegurar um bem maior? E quem define o que é o “bem maior” e quem seriam as “pessoas más”?

Esse problema nos lembra o clássico dilema filosófico do bonde, proposto em 1967 por Philippa Foot: um bonde está fora de controle e, em seu trilhar, cinco pessoas estão amarradas na pista. É possível apertar um botão que encaminhará o bonde para um caminho diferente, mas ali se encontra outra pessoa também atada. Você apertaria o botão?

Nida é forçada a enfrentar essas questões e decide que seus alvos serão sempre pessoas que cometem atos criminosos ou imorais. Imersa em suas reflexões, Nida seria uma salvadora ou uma assassina? A narrativa lança o paradoxo da justiça e da vingança e retrata a tragédia sociopolítica dos dias atuais. 

Mas não é só. Também é possível absorver referências cyberpunks no episódio: miséria humana, violência militar, migrações forçadas e xenofobia racializada, fundamentalismos que em alguns pontos se articulam com o avanço tecnológico.

A narrativa também permite interpretações dúbias. Trata-se de um episódio de fantasia ou um episódio sobre uma mente que está fantasiando? A atuação da protagonista é convincente em ambos os sentidos, desde a possibilidade de real interação entre Nida e Gaap até a possibilidade de que Nida está sofrendo com delírios psiquiátricos. 

Durante o episódio, inclusive, Nida lê um livro sobre “Visualização criativa: use o poder da sua imaginação para criar o que você deseja na vida”. Nida repetidamente também diz para Gaap que ele não é real e que ela está sonhando.

Vicky cruelmente diz para Nida que “você está sonhando se acha que pode fazer isso” em referência ao uso da jaqueta de couro vermelha que ela cobiça durante todo o episódio (a Netflix traduziu na legenda como “até parece que vai ficar bonita com isso”). 

Também vemos Nida dizer que precisava de um médico e que as pessoas suspeitavam que sua mãe tinha doenças mentais. Ademais, quando Nida se depara com pessoas desagradáveis, vivencia episódios de fantasias sangrentas, onde se imagina violentando aqueles que lhe agridem, comunicando o tormento psicológico de viver em uma sociedade hostil. 

A questão da solidão moderna como gatilho psicológico e a precarização do ambiente de trabalho que leva ao esgotamento generalizado também chamam atenção. Nida sempre está sozinha assistindo televisão e começa a ter visões que ninguém mais vê, o que não surpreende, dado o contexto de isolamento em que vive. 

O episódio traz, portanto, múltiplos caminhos e parece ser um teste de Charlie Brooker para ver se a trama vai emplacar com o público. O roteirista descreveu Demon 79 como um episódio diferente, mas adjacente ao universo Black Mirror. 

No final, Nida é presa e o mundo entra no apocalipse. Enquanto o planeta explode, Gaap convida Nida para viver no esquecimento eterno com ele, nos lembrando a cena final de Clube da Luta, no qual o casal dá as mãos e assiste sua cidade implodir.  E Nida aceita, inclusive porque aparentemente não havia coisa melhor que pudesse fazer por si própria, especialmente após um apocalipse causado, em tese, pelo fracasso de sua missão. 

Ela poderia morrer na Terra ou se juntar com Gaap e ter, pelo menos, um companheiro. Ou os anos de esquecimento eterno são apenas uma metáfora para a ascensão da extrema-direita e do tempo que Nida passaria na prisão ou no hospital psiquiátrico. 

Em Loch Henry (episódio que se passa no futuro), aparecem brevemente manchetes de jornais com referências ao Michael Smart, anunciando, inclusive, que o político havia lançado cães-robôs de segurança pública, o que indica que talvez o apocalipse não tenha acontecido (e se você assistiu Metalhead, sabe que a escolha dos cães-robôs também não deu muito certo).

Manchete de jornal do episódio ‘Loch Henry’ faz menção a Michael Smart, personagem de ‘Demon 79.’ (Foto: Netflix)

Michael Smart é a representação de péssimas escolhas de liderança e dos problemas que podem ser causados quando aproximamos pessoas mal intencionadas de tecnologias emergentes. Não à toa, a desinformação e o uso de novas tecnologias tem sido um dos mecanismos utilizados por candidatos em todo o mundo para ascenderem ao poder. 

Demon 79 funciona melhor que o anterior Mazey Day porque o elemento sobrenatural nos acompanha desde o início com um propósito dramático que não parece meramente aleatório ou substituível, mas se acopla com as difíceis escolhas morais de Nida. E esse cenário nos provoca: é melhor liberar um demônio que vive dentro de nós ou que vive dentro das outras pessoas?

REFERÊNCIAS

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Advogada e pesquisadora. Mestra em Direito pela universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do GT de inteligência artificial e novas tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB/AL.

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