Beyond The Sea: Uma Incursão Cyberpunk em Black Mirror

(Foto: Reprodução/Netflix)

(Foto: Reprodução/Netflix)

Podemos falar que Beyond The Sea, o terceiro episódio da última temporada de Black Mirror, é um episódio de contrastes. De início, vemos o contraste entre David (Josh Hartnett), tido como um astronauta moderno, e Cliff (Aaron Paul), como um religioso isolado que mora no campo.

Também há um contraste entre a ambientação da Terra, colorida e quente, e o cenário da nave, cinzento e frio. Além disso, temos o contraste entre homem e máquina, e também o contraste de épocas, considerando que se tratam de tecnologias muito sofisticadas existentes, em tese, já na década de 1960.

Cliff e David são figuras públicas reconhecidas nas ruas em razão de uma exótica missão: enquanto estão no espaço sideral, em sono profundo, suas consciências podem ser transferidas para réplicas robôs que vivem na Terra. Apesar de trabalharem juntos há dois anos, os protagonistas não parecem ter uma conexão profunda.

Neste episódio, observamos temas de luto, perda, inveja e solidão nos compelindo a refletir sobre os limites da manipulação de consciência e a exploração de mentes humanas, especialmente quando confrontadas com tragédias.

Trata-se, assim, da relação entre as novas tecnologias e as emoções humanas. Algumas histórias de Black Mirror já exploraram a relação entre o luto e corpos sintéticos, como Be Right Back, por exemplo. 

Josh Hartnett interpreta David. (Foto: Netflix/Nick Wall).

Beyond The Sea trata também da possibilidade de abuso humano no uso de tecnologias sofisticadas e como a nossa relação com esses mecanismos é influenciada pela dificuldade de lidar com sentimentos e situações complexas.

O roteirista Charlie Brooker revelou que o episódio foi inspirado em suas próprias experiências trabalhando em casa no Zoom durante a pandemia da COVID-19. Não à toa, as cenas na nave sideral trazem uma sensação de claustrofobia e nos fazem imaginar como seria a experiência de estar fisicamente enclausurado em casa enquanto nossa consciência transita em corpos mecânicos, diminuindo a sensação de distância tão frequente no período pandêmico.

O nome do episódio, inclusive, é uma referência a uma música de Bobby Darin, que toca quando David dança com sua esposa e depois quando dança com a esposa de Cliff, Lana (Kate Mara), cuja tradução nos diz que:

Em algum lugar além do mar
Em algum lugar, esperando por mim
Minha amada está nas areias douradas
E observa os navios que vão navegando

Em algum lugar além do mar
Ela está lá, esperando por mim
Se eu pudesse voar como pássaros no alto
Então eu navegaria direto para os braços dela

É muito além das estrelas
É quase além da Lua
Eu sei, sem sombra de dúvidas
Meu coração me conduzirá para lá em breveNós nos encontraremos além da costa
Vamos nos beijar, como antes
Felizes seremos, além do mar
E nunca irei navegar pra longe novamente

Assim como na música, o episódio trata do amor romântico e da transposição de distâncias. David é o típico homem americano realizado na década de 1960: tem uma casa e esposa bonita, saúde, dinheiro, estilo, reconhecimento e qualidade de vida.

Ele é tudo que o sonho americano preconiza, exceptuando o fato de que um de seus corpos é um robô. Cliff, por outro lado, é visto como um homem mais isolado, religioso, rígido e conservador, interpretado brilhantemente por Aaron Paul. 

Em uma madrugada, a casa de David é invadida por uma seita hippie, parecida com o grupo de Charles Manson. Ele é surpreendido por um dos invasores que prontamente anuncia: “conhecemos o homem-máquina”.

No episódio, os hippies têm aversão à ideia de fusão entre homens e máquinas, alegando que isso “não é natural” e que, portanto, seria uma “aberração”, assemelhando-se aos muitos discursos de ódio que hoje se direcionam à grupos vulneráveis e minoritários. Na ocasião, David e sua família são torturados e queimados, assim como na época da inquisição. 

Esse contexto dialoga com o “vale da estranheza”, expressão cunhada pelo professor de robótica japonês Masahiro Mori em 1970. Essa expressão se refere ao sentimento que experenciamos quando nos deparamos com robôs que se assemelham aos seres humanos.

Argumenta-se que quando há alguma semelhança do robô com seres humanos, há um sentimento de simpatia, como os robôs de Star Wars. Se essa semelhança, contudo, aumenta vertiginosamente ao ponto de se confundir com um humano, o sentimento de simpatia se transforma em desconforto. 

David assiste o velório de sua família e de sua réplica diretamente da nave espacial. Com a morte de sua réplica, David fica preso e atordoado na nave, sem ter como viajar para a Terra. E um detalhe importante é que a vida de Cliff também depende do bom funcionamento do experimento e da existência de David.

Nesse cenário, Cliff oferece o seu “link” para que o colega viaje à Terra por meio de sua réplica e tente esfriar a cabeça. A partir dessa cena, reitera-se a provocação: como seria se a sua consciência pudesse transitar por corpos diferentes do seu? 

Lana e a versão robô do marido, Cliff, sendo utilizada por David. (Foto: Reprodução/Netflix)

É frequente no episódio a aparição de livros de ficção científica, incluindo O Homem Ilustrado (1951), que traz uma série de contos que exploram a relação entre a tecnologia e a natureza humana, e Revolta na Lua (The Moon is a Harsh Mistress) (1966), que trata sobre a guerra de independência de uma colônia na Lua nos anos 2075 e 2076, sendo considerado como uma das primeiras obras no estilo cyberpunk. 

Embora não apareçam expressamente no episódio, também se observa a relação com obras como Zima Blue (conto literário e episódio da série Love, Death & Robots), Ghost in the shell (mangá cyberpunk), e os filmes Blade Runner e 2001: A Space Odyssey.

A influência cyberpunk no episódio é forte e esse movimento, atualmente, não se restringe à ficção. No contexto contemporâneo, big techs como Google, Facebook, Amazon são, direta ou indiretamente, inspiradas no cyberpunk.

O termo cyberpunk foi cunhado pelo escritor Bruce Bethke em 1983, em um conto de mesmo título, criado para se referir aos que seriam considerados os disruptores do século XXI: uma geração de adolescentes especialistas em computador, que unia atitudes punk e alta tecnologia. Esse movimento é também um produto da época, que mistura a cultura jovem rebelde (punk) em face do desenvolvimento tecnológico e da explosão capitalista. 

A ficção cyberpunk, por sua vez, assume força inicialmente com o romance de William Gibson, Neuromancer (1984) e Snow Crash (1992) de Neil Stephenson, que examinam futuros distópicos onde as fronteiras entre humano, máquina e realidade virtual se tornam labirínticas. Os heróis do cyberpunk não raro são hackers e os vilões, muitas vezes, são megacorporações.

Esse movimento também chega em Hollywood: basta constatar Blade Runner 2049, Mr. Robot, o desenvolvimento de um filme sobre Neuromancer, dirigido por Tim Miller, e o desenvolvimento da minissérie Snow Crash pela Amazon. E a razão desse hype pode ser atribuída à constatação de que a tensão entre homem e máquina nunca esteve tão próxima de nós.

Mark Zuckerberg, o fundador da Meta, sugere que seus funcionários leiam Snow Crash. Não é surpresa, portanto, quando o Facebook investe no metaverso e em óculos de realidade virtual. Em Snow Crash, há um ambiente chamado Metaverse, uma rede virtual acessada exclusivamente por meio de acessórios de realidade virtual. 

(Foto: Reprodução/Meta)

A estética e o design da Apple também se inspiram no cyberpunk, assim como realidades aumentadas do Google e assistentes virtuais que sussurram nos nossos ouvidos por meio de fones sem fio.

Os impactos ambientais são crescentes com o desenvolvimento de novas tecnologias, dialogando com a visão de Blade Runner de um planeta em catástrofe ambiental. E, claro, passamos boa parte do nosso tempo no mundo virtual, conectados com smartphones e tecnologias, o que também é previsto em histórias de cyberpunk.

Redes virtuais sempre ativas oferecem níveis viciantes de imersão e, ao mesmo tempo, instauram um grande sistema de vigilância enquanto a desigualdade econômica ressoa em níveis alarmantes e megacorporações substituem institutos democráticos. O hacking é uma habilidade cobiçada e uma arma de guerra.

Parece familiar?

Mas não é só: o cyberpunk traz reflexões filosóficas. O que significa ser humano? Afinal, além da composição orgânica, o que nos singulariza como seres que não são iguais aos androides e às máquinas? Como diferenciar seres humanos de bots nas redes sociais? Por que as pessoas se comportam e se exibem de maneira diferente no mundo real e no mundo virtual? Quais as fronteiras entre esses mundos?

Em Blade Runner 2049, os anúncios holográficos interagem com os seres humanos, as inteligências artificiais atendem diversas necessidades e os acessórios de realidade aumentada permitem que as pessoas estejam em vários lugares ao mesmo tempo.

(Foto: Reprodução/Blade Runner 2049)

Há alguma semelhança desse futuro distópico e do nosso mundo atual, onde recebemos anúncios individuais, somos perfilizados e temos necessidades supridas por assistentes virtuais e dispositivos conectados? 

O cyberpunk é, também, o oposto do tecnoutopismo transumanista como o de Ray Kurzweil, do Google, que reflete a crença de que a tecnologia irá tornar a humanidade melhor ou até substitui-la na singularidade.

No cyberpunk, o mundo é um lugar mais pessimista e opressor no sentido de que a tecnologia não resolverá os nossos problemas, apenas os tornará mais fáceis de diagnosticar.

Também compete sublinhar que, assim como no episódio de Black Mirror, na sociedade cyberpunk as pessoas passam a ser mais solitárias e dependentes da tecnologia para desenvolver laços e parceiros.

Durante o episódio, David se interessa por Lana, e Cliff se enfurece ao descobrir a aproximação. Nesse ponto, cabe evidenciar que um dos elementos centrais do episódio é a masculinidade tóxica. Trata-se de homens que veem crianças e filhos como coisas a serem possuídas.

Nos diálogos, David fala para Cliff que ele tem “tudo e não valoriza”. “I don’t have anything. Everything I had, gone, just… destroyed”. O uso das palavras anything e everything no lugar de anyone ou everyone é sintomático, especialmente porque no fim do episódio David assassina Lana e o filho, usando a réplica de Cliff, como se fossem um objeto. É possível observar, nesse contexto, a influência do materialismo e da coisificação do ser humano, especialmente de mulheres e crianças. 

David se transforma naquilo que o destruiu, transformando a tecnologia que o ajudava em arsenal, trazendo, assim, mais um contraste: a empatia de Cliff culminando em ressentimento e tragédia. 

REFERÊNCIAS

$ s pensou em “$ s”

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Advogada e pesquisadora. Mestra em Direito pela universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do GT de inteligência artificial e novas tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB/AL.

Mais notícias para você