Milei e a dolarização da economia argentina: uma solução simples?

(Foto: AFP/Arquivos)

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Com uma inflação acumulada de 115,6% ao ano, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Censos divulgados em julho de 2022, já é notória a crise econômica argentina.

Em cotação atual, 1 dólar dos Estados Unidos (USD) equivale a 705,00 pesos argentinos “paralelos” (ARS-PA, o chamado “dólar blue”, câmbio paralelo praticado ilegalmente em decorrência, sobretudo, da restrição de compra imposta ao dólar oficial).

A desvalorização da moeda é tamanha que, para se ter uma ideia, basta considerar que, há exato um ano, 1 dólar valia 270,00 pesos neste mesmo câmbio, tendo quebrado a barreira dos 500,00 pesos ainda em julho deste ano.

Diante da complicada situação do país, e contrariando todas as expectativas dos analistas políticos, os argentinos parecem ter escolhido uma solução drástica para tentar solucionar a hiperinflação: abraçar o projeto político alegadamente libertário de Javier Milei (coalizão Libertad Avanza).

Ele obteve 29,86% dos votos nas PASO (“Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias”) – votação prévia às eleições -, e hoje desponta como favorito na corrida presidencial.

Para Milei, além de adotar medidas liberalizantes, o segredo para a reestruturação econômica argentina não passa pela valorização da moeda frente ao dólar. Ao contrário: ante as tentativas frustradas de controlar a disparada da moeda americana, o ideal seria, definitivamente, abandonar o peso, adotando o dólar como moeda oficial, à semelhança do processo levado a cabo por El Salvador, Equador e Panamá.

A verdade é que a ideia não é nova – e, com efeito, já é aplicada de fato em diversos setores econômicos daquele país. Com o colapso da moeda fiduciária nacional, as transações nos setores imobiliário, financeiro e de tecnologia já são realizadas plenamente em dólar, o que aprofunda problemas estruturais como o déficit habitacional.

Apesar de afetar todo o território, a crise é sentida mais fortemente na capital, Buenos Aires, onde uma em cada três famílias dedica mais da metade de seus ingressos em aluguéis de imóveis, que sofreram redução de oferta em mais de 70% nos últimos três anos. 

Se os profissionais com maior qualificação exigem receber ao menos parte do salário em dólar ou Bitcoin, o mesmo não acontece com a esmagadora maioria da população, que vê não só seus rendimentos serem corroídos pela inflação em questão de dias, mas também não serem capazes de acompanhar o custo com despesas básicas, profundamente impactadas pela moeda americana (quando nela já não são cotados, a exemplo do aluguel).

À simples vista, a adoção voluntária do dólar como principal reserva de valor e até mesmo como moeda de eleição em transações correntes conduziria, ipso facto, à necessária dolarização da economia argentina, colocada por Milei como um processo natural decorrente da livre concorrência entre moedas, um postulado do pensamento anarcocapitalista. 

Porém, mesmo sem entrar em debates acerca da soberania monetária, tem-se como consenso que tal tarefa não é simples, sobretudo ao se considerar que, a fim de implementá-la, seriam necessários arrochos severos e uma forte escalada do endividamento – em um cenário que já ostenta reservas cambiais negativas de US$ 1 bilhão pelo Banco Central argentino.

Este é outro órgão que, aliás, Milei pretende extinguir, na contramão da tendência de conferir-lhe uma autonomia capaz de favorecer a estabilidade de preços e alavancar a credibilidade da autoridade monetária perante os agentes econômicos.

Em que pese, teoricamente, promover uma rápida desinflação (como a ocorrida no Equador nos anos 2000), a dolarização não resolve distorções macroeconômicas que acompanham a Argentina há anos.

É o que mostra a história recente do próprio país: em 1990, adotada a “lei da convertibilidade” pelo presidente Carlos Menem na tentativa de aplacar uma inflação de 2.304% ao ano, foi estabelecida uma paridade fixa entre o peso argentino e o dólar norte-americano, ou seja, 1 por 1 (uno a uno).

Apesar de ter estabilizado temporariamente a economia, a ausência de reformas estruturais desaguou, em 2001, no famigerado Corralito, com o congelamento de contas bancárias e a explosão da maior crise econômica e social da história argentina.

Se é certo que as tentativas pretéritas falharam clamorosamente em conduzir os rumos da economia argentina, tampouco parece ser tão simples a estabilização do país e a retomada do crescimento.

Quem quer que ocupe a Casa Rosada tem uma espinhosa missão. Parafraseando Manuel Bandeira, esperamos que a única coisa a fazer não seja tocar um tango argentino.

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Mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos. Advogada licenciada. Pesquisadora no GPPJ - Grupo de Pesquisa em Pragmatismo Jurídico, Teorias da Justiça e Direitos Humanos.

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