Como ingleses ‘sabotaram’ o desenvolvimento da indústria alagoana

(Design: Clara Almeida/Mercatus)

Quem passeia pelos cânions do Rio São Francisco, em Demiro Gouveia, sertão de Alagoas, não imagina que aquelas paredes rochosas foram testemunhas de uma disputa entre brasileiros e ingleses há pouco mais de 100 anos. O principal personagem dessa história é a pessoa que hoje dá nome àquele município.

Também pode ser difícil imaginar que naquela região, conhecida como ‘Pedra’, em 1914, funcionava um dos mais avançados parques fabris do país, com direito a estradas – em uma época onde apenas capitais as recebiam -, e energia elétrica com geração própria.

O principal produto fabricado era a linha de costura Estrela, líder no mercado nacional e que também era exportada para outras nações. E o responsável pelo negócio era Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, um dos pioneiros da industrialização do Brasil.

Interior da Companhia Agro Fabril Mercantil. (Acervo: Seminário Cariri Cangaço)

Mas a rápida expansão econômica da fábrica e da região não passou despercebida à concorrência estrangeira. A empresa britânica Machine Cottom, fundada em Londres, em 1755, viu nas linhas Estrela uma ameaça ao seu então consolidado domínio comercial.

“Delmiro já não se continha dentro do Brasil. Expandia-se pelo continente, favorecido pelas circunstâncias da Primeira Guerra Mundial. No auge, a campanha submarina alemã afundando cargueiros e dificultando ao máximo o comércio internacional. É difícil prever aonde chegaria Delmiro”, conta o escritor e jornalista pernambucano JC Alencar Araripe.

Em 1917, Delmiro Gouveia foi assassinado enquanto lia jornal, pela noite, na varanda de sua casa. Foram três tiros: um o atingiu no braço; outro no coração; e o último acertou a parede atrás dele.

Após a morte do empreendedor, a Machine Cottom comprou o parque industrial, o destruiu e lançou as máquinas têxteis no Rio São Francisco. Os carretéis de linha já prontos foram vendidos pela metade do preço.

O empreendedor

Delmiro Gouveia quando já era considerado um grande empreendedor. (Foto: desconhecido)

Delmiro Gouveia nasceu na cidade de Ipu, no Ceará, em 1863. Quando tinha cinco anos de idade, sua família migrou para Pernambuco. Aos 15 anos, com a morte da mãe, passou a trabalhar como cobrador da Brazilian Street Railway Company, a empresa que cuidava dos trens urbanos do Recife.

Após passar por diversos empregos de negociante, inaugura na capital pernambucana, em 1899, o Mercado Modelo Coelho Cintra (também chamado de Mercado do Derby), um centro comercial e de lazer, que hoje é considerado o primeiro shopping center do Brasil.

O empreendimento, que vendia mais barato que outros estabelecimentos comerciais da cidade, foi visto como um obstáculo para a alta sociedade pernambucana.

Mercado Modelo Coelho Cintra ou Mercado do Derby, o primeiro shopping center do Brasil. (Acervo: Folha de Pernambuco)

O Mercado do Derby teria sido incendiado, no primeiro dia do ano de 1900, de propósito pela polícia a mando do conselheiro Rosa e Silva, então vice-presidente da República, representante da oligarquia local.

De acordo com Araripe, após o incidente, Delmiro deu o primeiro passo para migrar para Alagoas: raptar a filha do governador de Pernambuco, Carmélia, uma adolescente de 16 anos por quem enamorou-se.

“Não teve alternativa senão fugir. Como pretendia continuar no comércio de peles, instalou-se em Pedra, na confluência dos três estados – Alagoas, Pernambuco e Bahia”, explicou o pesquisador.

Parque industrial alagoano

Seção de produção das linhas Estrela. (Acervo: Folha de Pernambuco)

Com o negócio rendendo muitos lucros, em 1912 Delmiro funda a fábrica de linhas Companhia Agro Fabril Mercantil. E, claro, uma fábrica moderna precisaria de energia elétrica. Foi então que Delmiro Gouveia construiu a Usina Hidrelétrica de Angiquinho – a primeira do Nordeste.

Foram abertos 520 quilômetros em estradas, e construída uma vila operária para cerca de 800 dos 2 mil funcionários. Todas as residências possuíam esgoto e luz elétrica, algo inimaginável para a classe trabalhadora da época. Todos os funcionários recebiam tratamento médico, odontológico e educação escolar.

Cachoeira e Usina Hidrelétrica de Angiquinho. (Acervo: Folha de Pernambuco)

Na povoação de Pedra, Delmiro obrigou os cidadãos a tomarem banho, não fumarem cachimbo de barro e todos deveriam andar calçados. Era proibido beber cachaça.

Com o sucesso internacional da Estrela, a companhia inglesa Machine Cottom boicotou clientes da empresa rival e registrou o nome “Estrela” na Argentina e no Chile. Os britânicos tentaram, por diversas vezes, comprar a Companhia Agro Fabril Mercantil. E por diversas vezes, Delmiro Gouveia resistiu às propostas, afirmando que seria ele quem compraria a Machine Cottom. Mas, foi assassinado aos 54 anos.

Propaganda da Linha Estrela no jornal O Mossoroense, do Rio Grande do Norte (Foto: Jornal O Mossoroense)

Três pessoas foram condenadas pelo crime. Duas foram assassinadas na prisão. Em 1982, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) inocentou os acusados. Nenhum deles estava sequer em Pedra no momento da morte de Delmiro.

Herói ou vilão?

Delmiro Gouveia em foto de estúdio tirada no Recife, em data desconhecida. (Acervo: Folha de Pernambuco)

Apesar de alguns especialistas tratarem Delmiro Gouveia como um herói visionário, outros o colocam como uma espécie de ditador. Em dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco, o pesquisador Edvaldo Francisco do Nascimento observou que os funcionários da fábrica viviam sob controle social. As escolas e as regras impostam eram exemplos disso.

“As multas, as repreensões, e até as punições como exposição à humilhação e violência física praticadas por Delmiro faziam os funcionários trabalharem com o máximo de zelo para não cometerem falta, procurando realizar suas funções com agilidade e perfeição”, ressaltou o especialista.

Em artigo, o doutor em história Dilton Maynard defendeu que a visão ufanista de Delmiro Gouveia foi criada pelo escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945).

“Através de Mário, emerge um brasileiro [Delmiro] vocacionado ao progresso, embrenhado nos sertões e fazendo ali tudo o que caberia aos governantes”, afirmou. No modernismo, se prezava pela valorização do que era brasileiro, o que teria contribuído para a mistificação do empresário.

Ainda segundo Maynard, na obra Filhos da Candinha (1943), Mário de Andrade transformou Delmiro Gouveia em uma espécie de “anti-Macunaíma”, em alusão ao personagem sem caráter criado em 1928; um herói que tentou salvar o sertão do atraso.

Herói ou vilão, Delmiro Gouveia ainda é lembrado mais de 100 anos após sua morte. Alagoas jamais voltou a ver uma indústria com o mesmo poder que a produtora das linhas Estrela.

Referências

Delmiro Gouveia e o processo educacional desenvolvido no núcleo fabril de Pedra, no sertão de Alagoas (1902 – 1026), de Edvaldo Francisco do Nascimento.

Glória e tragédia de Delmiro Gouveia, de J.C. Alencar Araripe.

O Anti-macunaíma: Mário de Andrade e a Mitificação de Delmiro Gouveia, de Dilton Cândido S. Maynard.

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