IA e greve em Hollywood: o que isso nos revela sobre o futuro do trabalho

(Foto: Frederick J. Brown/AFP)

(Foto: Frederick J. Brown/AFP)

Em maio de 2023 houve a paralisação dos roteiristas ligados à Writers Guild of America (WGA) e, em julho, a Screen Actors Guild – American Federation of Television and Radio Artists (SAG-AFTRA) também anunciou a paralisação. Trata-se da greve dos roteiristas, atores e atrizes de Hollywood. Mas o que isso nos revela sobre o futuro do trabalho?

Esses sindicatos entraram em movimento grevista para veicular reivindicações com a associação patronal Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP) em torno de questões trabalhistas e do uso da inteligência artificial (IA) na indústria do entretenimento. 

Depois de 148 dias de greve, foi finalmente firmado um acordo provisório entre o sindicato dos roteiristas da América e os estúdios produtores, viabilizando o retorno às atividades. O sindicato de atores e atrizes de Hollywood também pausou seus trabalhos com reivindicações de remunerações mais altas e restrições ao uso de inteligência artificial na indústria audiovisual, exigências conexas com as dos roteiristas. O sindicato de atores e atrizes ainda segue em fase de reivindicação grevista.

Estima-se que essa tenha sido uma das greves mais significativas para a indústria de Hollywood desde 1960, especialmente em razão do alinhamento entre as categorias. Os profissionais passaram cinco meses paralisados no intuito de viabilizar os seus pleitos e essa foi a primeira disputa trabalhista em Hollywood que envolveu fortemente os impactos da IA no trabalho.

Uma das regras da greve foi a vedação de divulgações dos filmes lançados. Se você acompanha Bruna Marquezine, deve ter notado que ela não divulgou a estreia do filme da DC Comics em que atuou, o Besouro Azul (e não foi por falta de vontade). 

A greve discutiu o impacto do desenvolvimento de plataformas de streaming e de novas formas de criação audiovisual. O próprio ChatGPT é um exemplo de IA generativa que você deve conhecer.

(Foto: Selcuk Acar/Anadolu Agency/Getty Images)
(Foto: Selcuk Acar/Anadolu Agency/Getty Images)

A greve começa cerca de cinco meses após o lançamento do ChatGPT, uma inteligência artificial capaz de escrever histórias e narrativas. O episódio “A Joan é péssima” de Black Mirror, por exemplo, aborda satiricamente o impacto da IA na criação de roteiros em plataformas de streaming. Parece totalmente fictício, mas não é. O roteirista Charlie Brooker, inclusive, foi expressamente favorável à greve. 

Isso se deve à constatação de que a IA passou a ser utilizada como um instrumento para a escrita de episódios, muitas vezes com nenhuma ou pouca participação humana, além da criação e recriação de imagens e edição de vídeos.

Os estúdios já começam a se movimentar em parcerias com empresas de IA para resumos de roteiros, marketing e criação de cenários. Atores e roteiristas começaram a perceber abusos no uso dessa tecnologia como, por exemplo, na modificação de criações humanas pela IA e no uso perpétuo da imagem dos atores.

É nesse sentido que alguns artistas, como Samuel L. Jackson, por exemplo, não assinam contratos que usam sua imagem em perpetuidade. Madonna também incluiu em seu testamento cláusula que impede o uso de hologramas e recriação de imagem por meio de IA e Keanu Reeves não assina contratos que utilizem sua imagem em deepfakes. E se você viu o recente comercial da Volkswagen com a Elis Regina, sabe que isso já é uma realidade.

O contexto da greve é também compreendido na perspectiva da precarização e da uberização do trabalho. A ideia de gig economy diz respeito a uma tendência econômica de contratação com vínculos precários, temporários ou autônomos.

Nesse contexto, os trabalhos se aproximam cada vez mais de tarefas automatizadas com vínculos precários e rumos definidos por algoritmos, que posicionam em segundo plano a efetiva autonomia humana. A ponderação entre os riscos e benefícios do uso da IA no ambiente laboral é posta em xeque diariamente, sem grandes debates que deveriam acompanhar essa controvérsia. 

A uberização do trabalho começa a se destacar com iniciativas de transporte por aplicativo, com oferta generalizada em tecnologias de informação e comunicação, alcançando, ainda, a entrega de alimentos.

Modelos em que o trabalhador aguarda, em qualquer lugar, demandas de trabalho advindas de diversos lugares e pessoas, em um contexto de desregulamentação e de excesso de mão-de-obra. Contudo, a iniciativa se desenvolveu e se espalha para diversos setores profissionais. Populariza-se a ideia de ter “colaboradores” e do “empresário de si mesmo”.

Nesse ponto, a iniciativa grevista foi relevante para a articulação dos interesses da categoria, sem a qual essas questões provavelmente não teriam sido levadas em consideração. No acordo firmado, as partes reconhecem que há incerteza no cenário em torno da IA e se comprometem em se reunir semestralmente ao longo de três anos para discutir esses rumos. 

Também restou pactuado que: a) a IA não poderá escrever ou reescrever material literário e o material gerado pela IA não será considerado material de origem; b) um roteirista pode optar por usar IA, mas o estúdio não pode exigir que o escritor use software de IA; c) os estúdios devem informar se algum material fornecido aos escritores foi gerado por IA; d) ao sindicato fica reservado o direito de afirmar que a exploração de material de roteiristas para treinar IA é proibida pelo acordo ou por outra lei. 

Além das questões atinentes à IA, o acordo também estabelece regras para pagamentos residuais aos roteiristas, número mínimo de funcionários e taxas de remuneração mínima. A greve reivindicou mais transparência por parte das plataformas, que não compartilhavam os números de visualizações ou lucros obtidos com as produções. 

As reivindicações são os sintomas da transformação da arte em um produto de mercado e mostram que Hollywood pode não ser tão fascinante assim. Apesar de não afetar todas as profissões da mesma maneira, a relação da IA e o futuro do trabalho é algo que deve concernir a todos nós, em uma perspectiva de governança de riscos e mitigações de impactos.

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Advogada e pesquisadora. Mestra em Direito pela universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do GT de inteligência artificial e novas tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB/AL.

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